quarta-feira, 13 de janeiro de 2010


Daniel Campelo. "O que temos hoje é um Parlamento amestrado"





A marcação da entrevista revelou um Daniel Campelo pouco interessado em falar sobre o famoso "Orçamento Limiano". Mas aceitou o repto e convidou os jornalistas a comparecerem na reserva ecológica da área protegida das Lagoas, em Ponte de Lima. Na hora marcada, chegou no seu jipe, desceu e disse sorridente: "Esta é que é a verdadeira história do Orçamento Limiano." O espaço a que agora dedica todo o seu tempo como director - depois de ter abandonado a presidência da Câmara Municipal de Ponte de Lima, que ocupou durante 16 anos -, é apontado pelo próprio como "a jóia da coroa" dos seus mandatos. Mas o arranque do projecto só foi possível devido à intervenção do então ministro do Ambiente, José Sócrates, que, após uma visita ao local, assinou em 30 dias o despacho que "permitiu construir a melhor área protegida do país". Foi o início de uma relação de proximidade entre Campelo e Sócrates, que meses mais tarde se transformou numa porta de entrada para a viabilização do Orçamento do Estado para 2001, proposto pelo governo minoritário de António Guterres: Sócrates foi "um interlocutor privilegiado" nas negociações para definir um caderno de encargos que levasse os deputados de Viana do Castelo a subscrever o Orçamento. Numa fase inicial, Daniel Campelo teve a companhia de um deputado do PSD. Mas acabou por viabilizar o Orçamento sozinho. Resistiu às pressões no CDS e venceu o impulso de se demitir dos cargos de deputado e de presidente da Câmara de Ponte de Lima. Hoje olha para trás com o sentimento de que valeu a pena: "Voltaria a fazer o mesmo. Talvez tivesse outros cuidados de linguagem, mas voltaria a fazer o mesmo porque acho que fiz bem." Hoje, defende, "os deputados não podem ser marionetas dos partidos".

Gosta de queijo?

Gosto de queijos com alma. Portugal tem bons queijos, mas só gosto dos que têm alma. Não gosto de queijo flamengo.

Que sente por ter ficado para a história política como o homem do orçamento do Queijo Limiano?

Só aconteceu por força da apetência dos jornalistas para a notícia mais sensacionalista ou caricata. Na altura, como eu tinha feito uns meses antes, uma greve de fome, na sequência de divergências quanto à marca Queijo Limiano, acabaram por fazer a ligação fácil ao Queijo Limiano, associando-o ao Orçamento que ajudei a aprovar. Mas esse Orçamento do Estado incluía coisas muito mais sérias, profundas e estruturadas para o desenvolvimento da região e para a correcção das assimetrias que eram ainda muito fortes na altura.

Como surgiu essa disponibilidade para viabilizar um Orçamento do Estado de um governo PS, numa altura em que era deputado do CDS?

Na altura, a verdade é que todos os partidos queriam que esse Orçamento passasse, mas ninguém queria votar para não ter o ónus da sua viabilização. Sabendo disso, e sabendo também que outros deputados da região criticavam o obscurantismo a que os governos tinham votado o distrito de Viana do Castelo, decidimos votar esse Orçamento do Estado [OE] a troco do mero cumprimento das promessas do governo para a região. Nunca exigimos nada que não fosse devido e que não fosse natural, pois eram intenções que transitavam sucessivamente de ano para ano nos OE e nas intenções dos governos. Só exigimos isso.

Contactou então o governo de Guterres para viabilizar o OE.

Fiz saber da minha disponibilidade para votar nessas condições, o governo respondeu e concordou... portanto votei.

E quais eram as grandes linhas desse caderno de encargos que apresentou ao governo de Guterres?

Eram um conjunto de acessibilidades rodoviárias e portuárias e um pacote de incentivos às zonas do interior mais desfavorecidas. Não eram coisas diabólicas ou muito especiais. Eram apenas coisas que os governos inscreviam sucessivamente nos seus OE e nunca cumpriam.

Entre elas a criação desta área protegida das Lagoas, em Ponte de Lima?

Não. Este espaço resultou de um convencimento feito meses antes directamente ao então ministro do Ambiente, José Sócrates, que em boa hora fez aquilo que nenhum outro ministro do Ambiente tinha feito. Todos tinham visitado este espaço e manifestado grande admiração, mas não tomaram a iniciativa de o classificar. José Sócrates fez em 30 dias a portaria para a sua classificação. Foi aí que ele conquistou também uma parte da admiração, amizade e confiança que lhe permitiu depois ir mais longe quando se considerou oportuno. No fundo, a minha aproximação a esse governo resultou da eficácia na classificação desta zona como área protegida e, mais tarde, da aprovação de financiamentos que permitiram construir aqui a melhor área protegida do país.

José Sócrates foi depois um intermediário nas negociações com Guterres?

Foi um interlocutor privilegiado só por causa disso: tinha criado uma boa imagem no distrito de Viana do Castelo, até porque também conseguiu resolver o problema dos aterros sanitários nesta zona, como fez um pouco por todo o país. Ou seja, gerou uma empatia e uma confiança na sua eficácia, não apenas na Câmara de Ponte de Lima, mas em todas as câmaras do distrito. Isso foi confessado por todos. Mas a verdade é que foi nesta classificação de zona de área protegida que pode dizer-se que começou a viabilização desse "Orçamento Limiano". Acabou por ficar com esse nome apesar de os apoios para uma nova fábrica de queijo em Ponte de Lima, incluídos nessa negociação, nunca terem resultado em nada por não terem aparecido empresários interessados em investir.

Numa fase inicial tinha mais apoios entre outros deputados da região. Mas acabou por viabilizar o OE sozinho. Que aconteceu?

Tinha sido tomada uma decisão de grupo no seio da associação de autarcas do distrito, onde se desenhou inicialmente a hipótese de viabilizarmos o Orçamento. Depois acabei por ficar sozinho, porque outro deputado do PSD decidiu recuar nas suas intenções.

Nunca hesitou?

Houve momentos em que as pressões foram de tal ordem que hesitei e ponderei até demitir-me de deputado e presidente de câmara. Mas outras pessoas fizeram-me ver que isso seria um erro e seria fugir pelo sítio mais fácil. Resolvi não fugir e enfrentar a situação.

Como reagiu Paulo Portas?

Já é conhecido: reagiu mal! Mas eu acho que é compreensível. Uma coisa era se eu tivesse viabilizado o OE em conjunto com outro deputado de outro partido. A imagem seria de um voto regional, tal como tem acontecido várias vezes com o voto da Madeira. Mas, como fiquei sozinho, essa viabilização passou a ser resultado de um voto individual de alguém que pertencia a um partido. Obviamente tudo isso caiu em cima de mim, mas não me importei muito.

Saiu do CDS, regressou depois com Ribeiro e Castro. Como está hoje a sua relação com Paulo Portas?

Está normal. As pessoas depois vão interiorizando as coisas. Sempre fui a favor de uma obediência aos eleitores e aos compromissos que assumimos com os eleitores. Mas há pessoas que acham que a obediência ao directório partidário é mais importante e dão-lhe preferência. Nunca concordei com isso e sempre achei que a política só tem sentido quando tem utilidade para as pessoas que nos elegem. Tive a oportunidade de ser útil para as pessoas que me elegeram e não a desperdicei.

Seria, portanto, favorável a uma alteração na lei eleitoral portuguesa, para os círculos uninominais?

Sim. Era a única forma de impedir que deputados se candidatem e depois se demitam antes de tomar posse. Ou outros que assumem compromissos com as pessoas, mas depois não querem saber e votam aquilo que os obrigam a votar. É óbvio que os ciclos uninominais obrigam a um diálogo muito mais profundo dentro dos partidos. Mas há pessoas que não querem diálogo, querem é centralizar. O país já é centralista e depois querem também centralizar a governação. Os ciclos uninominais obrigariam os partidos a ter mais cuidado na escolha dos deputados, a escolher com mais qualidade e a ter muito mais cuidado com os compromissos que assumem com os eleitores. O que se passa agora é que os deputados não votam em função da sua região, mas, sim, em função do que decide o partido. Isso tem de ser feito de forma mais clara, até para haver uma maior responsabilização dos eleitos perante o eleitorado.

Sentiu-se ostracizado no CDS?

Nunca me senti ostracizado. Até senti muito apoio de pessoas do partido, algumas delas até pertenciam à direcção. O que aconteceu foi mais uma questão de incomodidade política perante os cenários políticos da altura. Mas, a partir do momento da minha votação, o país passou a reflectir muito sobre as reais obrigações de um deputado. Aliás, houve vários comentadores que escreveram sobre isso e acho que a maioria até defendeu a minha posição. Há hoje necessidade de tornar a política muito mais autêntica e tentar encontrar soluções para que as pessoas confiem mais nos deputados que elegem. Os deputados não podem estar só a votar para um directório em Lisboa que decida tudo. Os deputados não podem ser marionetas de um secretário-geral ou de um presidente de um partido.

Acha que é o que temos hoje na Assembleia da República?

Completamente! O que temos hoje é um Parlamento amestrado em que os deputados não têm nome ou autonomia e em que os deputados por si só não valem nada. Isso é mau para a democracia. É normal que se vote em consonância com as orientações das bancadas, porque há princípios comungados por todos os deputados eleitos por um partido. Mas naquele momento específico achei que era uma hipocrisia o que estava a acontecer, porque todos os partidos queriam que aquele Orçamento fosse aprovado. Todos! Da mesma forma que está agora a acontecer uma hipocrisia, porque todos os partidos da oposição estão a criar condições para que não tenhamos um governo estável. Portanto, arriscamo-nos a ter eleições antecipadas porque há falta de diálogo entre os deputados e entre os partidos. Ou seja, há hipocrisia porque ninguém quer eleições antecipadas, mas andam todos a falar e a fazer exigências, além de termos uma oposição a aprovar medidas avulsas fora do OE e contra o sentido de governação da maioria. Acho que é demasiado arriscado, e até um pouco irresponsável, que os partidos aprovem à força medidas que o governo não está disposto a cumprir.

Acha que há um braço-de-ferro que tem pouco a ver com os interesses do país?

Exactamente. Esse jogo tem mais a ver com os interesses partidários de criar dificuldades à governação, de mostrar serviço ou fazer aquilo de que o povo gosta. Mas às vezes é preciso fazer as coisas de que o país precisa e não aquilo de que o povo gosta. O momento económico do país é grave. Não estamos em hora de floreados mas, sim, em hora de decisões e de grandes responsabilidades.

O Presidente da República tem repetido os apelos para que acabem as querelas partidárias. Acha que é mesmo possível acabar com elas?

Há anos que digo isso. Portugal tem uma lógica de governação que pensa muita na estratégia dos partidos e pouco na estratégia do país. E isso nota-se em todos os partidos.

Se estivesse hoje na Assembleia da República teria defendido uma coligação de governo entre o PS e o CDS?

Completamente. E provavelmente não tinha votado algumas coisas, como a extinção do PEC, antes de assegurar uma negociação de profundidade para o futuro. Votar coisas avulsas sem tentar negociar uma estabilidade profunda não é responsável.

Mas o eleitorado entenderia que depois de um combate tão cerrado de Portas a Sócrates os dois se unissem no governo?

Uma coisa é criticar uma decisão. Outra coisa é depois conseguir vencer barreiras em nome do interesse nacional. Mas aí também é óbvio que o governo tem de criar condições para que isso aconteça. Não pode continuar a governar como se tivesse maioria. No fundo, o que os partidos têm de entender é que a responsabilidade é de todos. Agora parece que a poeira está a começar a assentar e que pode haver entendimentos. Vamos ver o que acontece.

Acha que este governo minoritário tem condições para chegar ao fim da legislatura?

No esquema que há em Portugal acho que não tem. Se os partidos mudarem a sua forma de trabalho e agirem apenas com um horizonte de eleições dentro de quatro anos, pode ter essas condições. Mas olhando para a tradição e para a ânsia dos partidos no geral, acho que vai ser muito difícil acabar esta legislatura. Embora o desejável fosse que o governo pudesse chegar ao fim.

Ficou a conhecer bem José Sócrates durante a altura do "Orçamento Limiano"?

Conheço alguma coisa, dentro daquilo que foi um trabalho entre um autarca e um membro do governo. Acho que é um indivíduo determinado, um lutador, que tem uma grande capacidade de resistência e de trabalho.

Concorda com o rótulo de arrogante?

Não sei. Também me acusaram muitas vezes de ser arrogante enquanto presidente de câmara, por ter ideias e às vezes não abdicar delas. As pessoas tendem a interpretar isso como arrogância. Mas não considero que essa arrogância seja uma característica predominante em Sócrates. Acho que é mais a determinação e que as pessoas podem confundir as coisas. Mas acho que um político não pode fazer só a vontade ao povo, se não deixa de ser líder e passa a ser liderado. Só que, como dizia Kissinger, também não pode andar tão longe do povo que o povo não o veja. Tem de haver um equilíbrio. O país precisa de estadistas, de gente que resista à tentação do serviço partidário acima do serviço ao país. Há já muito tempo que Portugal não tem estadistas. Raramente aparece um ministro com essa determinação e, quando aparece, alguém trata de o queimar logo. Normalmente os ministros mais responsáveis nas questões do interesse nacional são os mais facilmente queimados quer pelas oposições, quer pela comunicação social, quer pelos partidos a que pertencem.

Tem algum exemplo em mente?

Tenho. O ministro da Saúde Correia de Campos e a ministra da Educação Maria de Lurdes Rodrigues. Eram do melhor que o último governo tinha, mas não foram populares. Porque é essa a mentalidade portuguesa e em grande parte da comunicação social, que também é responsável por aparar esse jogo da oposição, dos sindicatos e dos interesses corporativos. Hoje toda a gente percebe que o que a nova ministra da Saúde tem feito é a continuação do trabalho iniciado por Correia de Campos. Fá-lo é com algum low profile, mas a parte difícil do trabalho já estava feita. O que aconteceu foi que houve interesses corporativos, mesmo dentro do PS, que levaram a que esses ministros não lhes servissem, pelos incómodos que causaram. É uma lógica negativa, porque faz com que as políticas de contentamento se sobreponham às políticas de Estado.

Era favorável a um pacto de regime para os próximos anos?

Sim, sempre defendi que, num momento destes em que não há minoria, deveria haver uma coligação forte. O país exige-o. Fosse um bloco central, fosse outro entendimento mais alargado. As pessoas não podem estar mais preocupadas com o verbo do que com a acção no país.

Retirou-se entretanto da política activa. Não pondera voltar?

Antes da última autárquicas decidi não me recandidatar à Câmara de Ponte de Lima, depois de 16 anos na presidência. Apoiei a solução vencedora, fiz apelo às pessoas para confiarem nela e acho que Ponte de Lima tem o seu governo em boas mãos para os próximos quatro anos. Agora, sempre disse que admitia continuar vivo na política para coisas de que goste, para coisas que saiba ou para coisas em que as pessoas me queiram.

Falou-se numa possível candidatura à Câmara de Viana do Castelo.

É pouco provável, mas não é impossível. Não quero fechar a porta a nada. O que quero é continuar a ser um cidadão útil à minha comunidade e à sociedade, envolvendo-me em projectos interessantes fora da política. Mas se um dia for chamado de volta à política, e se isso for do meu gosto e útil aos propósitos do que eu considero uma cidadania activa, não fecho a porta a essa possibilidade.

Já disse que queria travar um combate pela regionalização.

Não tenho dúvida nenhuma que o problema maior que Portugal atravessa hoje é não ter regiões e não ter uma organização regional. Temos um movimento municipalista forte, mas que tem o problema de não ter escala. Os municípios entraram numa situação em que vão começar a gastar dinheiro inútil, tal como as juntas de freguesia. Neste momento eu advogo a criação de regiões e a extinção das juntas de freguesia. Já cumpriram o seu papel, foram úteis, mas devem dar agora lugar a uma escala de trabalho mais alargado ao nível municipal, sendo que os municípios devem abdicar de parte das suas competências - e o governo de muitas - para uma estrutura regional que possa potenciar as capacidades de cada região. Se o país não reflectir seriamente sobre isto, durante esta legislatura, o país não conseguirá avançar para os tais projectos estruturais que o mantenham numa rota de futuro. Essa deveria ser a primeira coisa a discutir no país e não estas coisas dos casamentos homossexuais.

É contra as causas fracturantes da esquerda?

São coisas para divertimento. O país precisa é de enfrentar as causas reais do seu atraso. Não me perturbam nada essas causas, mas são coisas marginais que só interessam a meia dúzia de pessoas e que entretanto vão entretendo o país na discussão dessas causas que poderiam ser seguramente discutidas, mas que não são as causas principais do país. Até parece que o problema principal do país é haver pessoas do mesmo sexo que não se podem casar. Isso é ridículo.